sexta-feira, 12 de março de 2010


O ESPECTADOR EMANCIPADO

Artigo de Jacques Rancière


Tradução de Daniele Avila

Jacques Rancière, nascido em 1940 na Argélia, é professor emérito de estética e política na Universidade de Paris VIII, onde lecionou de 1969 a 2000. É autor, entre outras obras, de Os nomes da História, Políticas da escrita, O desentendimento, A partilha do sensível e o Mestre ignorante.
A nota na revista ArtForum de março de 2007, onde este texto foi publicado, diz: "O espectador emancipado foi apresentado originalmente, em inglês, na abertura da Quinta Academia Internacional de Artes de Verão, em Frankfurt, no dia 20 de agosto de 2004. O texto se apresenta aqui de uma forma levemente revisada.

"Eu chamei esta conversa de "O espectador emancipado". A meu ver, um título é sempre um desafio. Ele apresenta o pressuposto de que uma expressão faz sentido, de que há uma conexão entre termos separados, o que também significa entre conceitos, problemas e teorias que à primeira vista não parecem ter qualquer relação direta entre si. De um modo, este título expressa o quanto fiquei perplexo quando Mårten Spångberg me convidou para dar a palestra que deve ser a "linha diretriz" desta escola. Ele disse que queria que eu iniciasse esta reflexão coletiva sobre "a condição do espectador" porque ele ficara impressionado com o meu livro O mestre ignorante [(Le Mâitre ignorant (1987)]. Eu comecei a me perguntar que conexão poderia haver entre a causa e o efeito. Esta é uma escola que reúne pessoas envolvidas no mundo da arte, do teatro e da performance para pensar a questão da condição do espectador hoje em dia. O mestre ignorante foi uma reflexão sobre a teoria excêntrica e o destino estranho de Joseph Jacotot, um professor francês que, no início do século XIX, agitou o mundo acadêmico ao afirmar que uma pessoa ignorante poderia ensinar a outra pessoa ignorante o que ela mesma não conhecia, proclamando a igualdade de inteligências e exigindo a emancipação intelectual no lugar da sabedoria recebida no que diz respeito à educação das classes mais baixas. Sua teoria caiu no esquecimento em meados do século XIX. Achei necessário reavivá-la nos anos 1980 para instigar o debate sobre a educação e suas balizas políticas. Mas que uso pode ser feito, no diálogo artístico contemporâneo, de um homem cujo universo artístico poderia ser resumido a nomes como Demóstenes, Racine e Poussin?

Pensando bem, me ocorreu que a própria distância, a falta de qualquer relação óbvia entre a teoria de Jacotot e a questão da condição do espectador hoje em dia pode ser promissora. Ela poderia proporcionar uma oportunidade para estabelecer uma distância radical entre o que se pode pensar e os pressupostos teóricos e políticos que ainda sustentam, mesmo sob um disfarce pós-moderno, a maior parte das discussões sobre teatro, espetáculo e a condição do espectador. Eu fiquei com a impressão que de fato era possível que esta relação fizesse sentido, contanto que tentássemos reconstituir a rede de pressupostos que colocam a questão da condição do espectador numa interseção estratégica na discussão da relação entre arte e política e tentássemos esboçar o principal padrão de pensamento que por muito tempo emoldurou as questões políticas em torno do teatro e do espetáculo (e eu uso estes termos aqui num sentido bem generalizado - para incluir a dança, a performance e todos os tipos de espetáculos desempenhados por corpos atuantes diante de um público coletivo).

Os numerosos debates e polêmicas que têm levantado a questão sobre o teatro ao longo da nossa história podem ter suas origens em uma contradição muito simples. Vamos chamá-la de paradoxo do espectador, um paradoxo que pode se provar mais crucial do que o famoso paradoxo do ator e que pode ser resumido nos termos mais simples. Não existe teatro sem espectadores (mesmo que seja apenas um, único e escondido, como na representação ficcional de Le fils naturel (1757) feita por Diderot). Mas a condição do espectador é uma coisa ruim. Ser um espectador significa olhar para um espetáculo. E olhar é uma coisa ruim, por duas razões. Primeiro, olhar é considerado o oposto de conhecer. Olhar significa estar diante de uma aparência sem conhecer as condições que produziram aquela aparência ou a realidade que está por trás dela. Segundo, olhar é considerado o oposto de agir. Aquele que olha para o espetáculo permanece imóvel na sua cadeira, desprovido de qualquer poder de intervenção. Ser um espectador significa ser passivo. O espectador está separado da capacidade de conhecer, assim como ele está separado da possibilidade de agir.

A partir deste diagnóstico é possível tirar duas conclusões opostas. A primeira é que o teatro em geral é uma coisa ruim, que ele é o palco da ilusão e da passividade, que deve ser posto de lado em favor daquilo que ele proíbe: conhecimento e ação - a ação de conhecer e a ação conduzida pelo conhecimento. Platão chegou a esta conclusão há muito tempo: o teatro é o lugar em que pessoas ignorantes são convidadas para assistir pessoas que sofrem. O que acontece no palco é um pathos, a manifestação de uma doença, a doença do desejo e da dor, que não é nada além da autodivisão do sujeito causada pela falta de conhecimento. A "ação" do teatro não é nada além da transmissão dessa doença através de outra doença, a doença da visão empírica que olha para as sombras. O teatro é a transmissão da ignorância que torna as pessoas doentes através do meio da ignorância que é a ilusão de ótica. Portanto, uma boa comunidade é aquela que não permite a mediação do teatro, uma comunidade cujas virtudes coletivas são diretamente incorporadas nas atitudes vivas dos seus participantes.

Esta parece ser a conclusão mais lógica para o problema. Nós sabemos, no entanto, que esta não é a conclusão a que se tem chegado com maior freqüência. A mais comum é a seguinte: o teatro envolve a questão da condição do espectador e a condição do espectador é uma coisa ruim. Portanto, precisamos de um novo teatro, um teatro sem a condição do espectador. Precisamos de um teatro em que a relação ótica - implícita no termo theatron - esteja subordinada a outra relação, implícita no termo drama. Drama significa ação. O teatro é o lugar no qual uma ação é realmente desempenhada por corpos vivos diante de corpos vivos. Estes últimos podem ter abdicado do seu poder, mas esse poder é recuperado por aqueles outros na performance, na inteligência que esta performance constrói, na energia que ela transmite. O verdadeiro sentido do teatro deve ser atribuído a este poder que atua. O teatro deve ser trazido de volta à sua verdadeira essência, que é o contrário daquilo que é normalmente conhecido como teatro. O que se deve buscar é um teatro sem espectadores, um teatro onde os espectadores vão deixar esta condição, onde vão aprender coisas em vez de ser capturados por imagens, onde vão se tornar participantes ativos numa ação coletiva em vez de continuarem como observadores passivos.

Esta virada foi compreendida de duas formas, em princípio antagônicas, apesar de freqüentemente misturadas na prática teatral e na sua legitimação. Por um lado, o espectador deve ser libertado da passividade do observador que fica fascinado pela aparência à sua frente e se identifica com as personagens no palco. Ele precisa ser confrontado com o espetáculo de algo estranho, que se dá como um enigma e demanda que ele investigue a razão deste estranhamento. Ele deve ser impelido a abandonar o papel de observador passivo e assumir o papel do cientista que observa fenômenos e procura suas causas. Por outro lado, o espectador deve abster-se do papel de mero observador que permanece parado e impassível diante de um espetáculo distante. Ele deve ser arrancado de seu domínio delirante, trazido para o poder mágico da ação teatral, onde trocará o privilégio de fazer as vezes de observador racional pela experiência de possuir as verdadeiras energias vitais do teatro.

Nós reconhecemos estas duas atitudes paradigmáticas sintetizadas pelo teatro épico de Brecht e pelo teatro da crueldade de Artaud. Por um lado, o espectador deve ficar mais distante, por outro, deve perder toda distância. Por um lado, deve mudar o seu modo de ver para ver de um modo melhor; por outro, deve abandonar a própria posição de observador. O projeto de reformar o teatro oscilou incessantemente entre estes dois pólos de questionamento distante e incorporação vital. Isto significa que os pressupostos que sustentam a busca por um novo teatro são os mesmos que sustentaram a rejeição do teatro. Os reformadores do teatro mantiveram, de fato, os termos da polêmica de Platão, rearrumando-os ao tomar emprestada do platonismo uma noção alternativa de teatro. Platão estabeleceu uma oposição entre uma comunidade poética e democrática do teatro e uma "verdadeira" comunidade: uma comunidade coreográfica na qual ninguém permanece como espectador imóvel, na qual todos se movem de acordo com um ritmo comunitário determinado por uma proporção matemática.

Os reformadores do teatro reapresentaram a oposição platônica entre choreia e theater como uma oposição entre a essência viva e verdadeira do teatro e o simulacro do "espetáculo". Assim o teatro se tornou um lugar onde a condição passiva do espectador teve que se transformar no seu oposto - o corpo vivo de uma comunidade que desempenha o papel do seu próprio princípio. Lemos na carta de intenções desta escola: "O teatro permanece como o único lugar de confronto direto do público com ele mesmo enquanto coletivo." Podemos dar um sentido restritivo a esta frase, que iria apenas contrastar o público coletivo do teatro com os visitantes individuais de uma exposição ou a simples coleção de indivíduos assistindo um filme. Mas é claro que esta frase significa muito mais. Ela significa que "teatro" continua sendo o nome para uma idéia de comunidade como um corpo vivo. Ele transmite a idéia de comunidade como uma presença de si mesma em oposição à distância da representação.

Desde o advento do romantismo alemão, o conceito de teatro tem sido associado à idéia de comunidade viva. O teatro apareceu como uma forma da constituição estética - no sentido da constituição sensorial - da comunidade: a comunidade como um meio de ocupar o tempo e o espaço, como um conjunto de gestos vivos e atitudes vivas que estão acima de qualquer forma ou instituição políticas; a comunidade como um corpo performático e não como um aparato de formas e regras. Deste modo, o teatro foi associado à noção romântica de revolução estética: a idéia de uma revolução que não mudaria apenas as leis e instituições, mas transformaria as formas sensoriais da experiência humana. A reforma do teatro significou, deste modo, a restauração da sua autenticidade como uma assembléia ou uma cerimônia da comunidade. O teatro é uma assembléia onde as pessoas adquirem consciência da sua condição e discutem os seus próprios interesses, diria Brecht depois de Piscator. O teatro é uma cerimônia onde se dá à comunidade a posse das suas próprias energias, afirmaria Artaud. Se o teatro é defendido como o equivalente da verdadeira comunidade, como o corpo vivo da comunidade em oposição à ilusão da mimesis, não é de se surpreender que a tentativa de restaurar o teatro à sua verdadeira essência tenha tido como pano de fundo teórico a crítica do espetáculo.

Qual é a essência do espetáculo na teoria de Guy Debord? É a externalidade. O espetáculo é o reino da visão. Visão significa externalidade. Agora, externalidade significa a desapropriação do próprio ser de uma pessoa. "Quanto mais um homem contempla, menos ele é", diz Debord. Isto pode soar antiplatônico. É claro que a principal fonte para a crítica do espetáculo é a crítica da religião de Feuerbach. É o que sustenta aquela crítica - a saber, a idéia romântica da verdade como inseparabilidade. Mas esta própria idéia se mantém de acordo com o descrédito platônico quanto à imagem mimética. A contemplação que Debord denuncia é a contemplação teatral ou mimética, a contemplação do sofrimento provocado pela divisão. "A separação é o alfa e o ômega do espetáculo", escreve. Aquilo que o homem contempla neste esquema é a atividade que lhe foi roubada; é a sua própria essência que lhe foi arrancada, que se tornou alheia, hostil a ele, que consente com um mundo coletivo cuja realidade não é nada além da desapropriação mesma do homem.

Através desta perspectiva, não há contradição entre a busca por um teatro que pode dar-se conta de sua própria essência e a crítica do espetáculo. O "bom" teatro é postulado como um teatro que dispõe de sua realidade distinta com o objetivo único de suprimi-la, para transformar a forma teatral em uma forma de vida da comunidade. O paradoxo do espectador é parte de uma disposição intelectual que é, mesmo em nome do teatro, compatível com a rejeição platônica do teatro. Esta estrutura está construída em torno de algumas idéias essenciais sobre as quais devemos nos questionar. De fato, devemos questionar o próprio fundamento no qual estas idéias estão baseadas. Estou falando de toda uma gama de relações, firmando-me em equivalências e oposições chaves: a equivalência entre teatro e comunidade, entre o ato de ver e a passividade, entre externalidade e separação, mediação e simulacro; a oposição entre coletivo e individual, imagem e realidade viva, atividade e passividade, consciência de si e alienação.

Este conjunto de equivalências e oposições endossa uma dramaturgia muito complicada de culpa e redenção. O teatro é acusado de fazer com que seus espectadores sejam passivos, contrariando a sua própria essência, o que consiste, segundo se alega, na auto-atividade da comunidade. Como conseqüência, ele se propõe a tarefa de reverter seu próprio efeito e compensar sua própria culpa devolvendo aos espectadores sua autoconsciência e auto-atividade. O palco do teatro e a cena teatral tornam-se então a mediação evanescente entre o mal do espetáculo e a virtude do teatro verdadeiro. Eles apresentam, para uma platéia coletiva, espetáculos que pretendem ensinar aos espectadores como eles podem deixar de ser espectadores para que se tornem atores de uma atividade coletiva. Ou, de acordo com o paradigma brechtiano, a mediação teatral torna a platéia atenta à situação social em que o próprio teatro se encontra, dando a deixa para a platéia agir conseqüentemente. Ou, de acordo com o esquema artaudiano, faz com que eles abandonem a condição de espectador: eles não estão mais sentados diante de um espetáculo, estão cercados pela cena, arrastados para o círculo da ação, o que devolve a eles sua energia coletiva. Em ambos os casos, o teatro é uma mediação que se auto-suprime.

Este é o ponto em que as descrições e proposições da emancipação intelectual entram no quadro e nos ajudam a remoldurá-lo. Obviamente, esta idéia de uma mediação que se auto-suprime é muito conhecida entre nós. Ela é precisamente o processo que deve acontecer na relação pedagógica. No processo pedagógico, o papel do professor é colocado como o ato de suprimir a distância entre a sua sabedoria e a ignorância do ignorante. Suas lições e exercícios visam diminuir continuamente a lacuna entre conhecimento e ignorância. Infelizmente, para diminuir a lacuna, ele deve seguir renovando-a sempre. Para substituir a ignorância pelo conhecimento adequado, ele deve se manter sempre um passo à frente do aluno ignorante que está perdendo sua ignorância. A razão para isto é simples: no esquema pedagógico, o ignorante não é apenas aquele que não conhece aquilo que ele não conhece; mas também aquele que ignora como conhecer. O mestre não é apenas aquele que sabe precisamente o que permanece desconhecido para o ignorante; ele também sabe como fazer com que isto seja conhecível, a tal hora e em tal lugar, de acordo com tal protocolo. Por um lado, a pedagogia é apresentada como um processo de transmissão objetiva: um pouco de conhecimento depois de mais um pouco de conhecimento, uma palavra depois da outra, uma regra ou teorema depois do outro. Este conhecimento deve ser transmitido diretamente da mente do mestre ou da página do livro para a mente do aluno. Mas esta transmissão igual está baseada numa relação de desigualdade. Apenas o mestre conhece o modo certo, o tempo certo e o lugar certo para esta transmissão "igual", porque ele conhece algo que o ignorante jamais conhecerá - a não ser que ele mesmo se torne um mestre - algo mais importante que o conhecimento transmitido. Ele conhece a distância exata entre ignorância e conhecimento. Esta distância pedagógica entre uma determinada ignorância e um determinado conhecimento é, na verdade, uma metáfora. É uma metáfora de uma lacuna radical entre o caminho do aluno ignorante e o caminho do mestre, a metáfora de uma lacuna radical entre duas inteligências.

O mestre não pode ignorar que o aluno dito ignorante que está sentado à sua frente na verdade conhece muitas coisas que ele aprendeu sozinho, olhando e ouvindo o mundo à sua volta, adivinhando os significados do que ele via e ouvia, repetindo o que ele ouviu e aprendeu ao acaso, comparando o que ele descobre com o que ele já sabe, e assim por diante. O mestre não pode ignorar que o aluno ignorante adquiriu, através destes mesmos meios, o aprendizado que é a condição prévia para todos os outros: o aprendizado da sua língua materna. Mas, para o mestre, este é apenas o conhecimento do ignorante, o conhecimento da criancinha que olha e escuta coisas aleatoriamente, compara e palpita ao acaso e repete por hábito, sem entender a razão dos efeitos que ele observa e reproduz. O papel do mestre é romper com este processo tateante de tentativa e erro. É ensinar ao aluno o conhecimento do conhecível, ao seu próprio modo - o modo do método progressivo, que dispensa todo tatear e todo acaso, explicando itens dentro de uma ordem, do mais simples ao mais complexo, de acordo com o que o aluno é capaz de entender, levando em consideração sua idade ou sua formação social e suas expectativas sociais.

O conhecimento fundamental que o mestre possui é o "conhecimento da ignorância". É o pressuposto de uma lacuna radical entre duas formas de inteligência. Este também é o conhecimento fundamental que ele transmite ao aluno: o conhecimento de que as coisas devem ser explicadas a ele para que ele entenda, o conhecimento de que ele não consegue aprender sozinho. É o conhecimento da sua incapacidade. Deste modo, a instrução progressiva é a verificação sem fim do seu ponto de partida: a desigualdade. Esta verificação sem fim da desigualdade é o que Jacotot chama de processo de embrutecimento. O oposto do embrutecimento é a emancipação. Emancipação é o processo de verificação da igualdade de inteligência. A igualdade de inteligência não é a igualdade de todas as manifestações de inteligência. É a igualdade em todas as suas manifestações. Isto significa que não há lacuna entre duas formas de inteligência. O animal humano aprende tudo do mesmo modo que aprendeu a sua língua materna, como se aventurou pelas florestas das coisas e signos que o rodeiam para assumir seu lugar entre seus companheiros humanos - observando, comparando uma coisa com a outra, um signo com um fato, um signo com outro signo, e repetindo as experiências que ele encontrou primeiramente ao acaso. Se a pessoa "ignorante" que não sabe ler só sabe uma coisa de cor, mesmo que seja uma simples oração, ela pode comparar este conhecimento com algo que ela ainda ignora: as palavras da mesma oração escritas num papel. Ela pode aprender, signo por signo, a semelhança daquilo que ela desconhece com aquilo que ela conhece. Ela pode fazer isso se, a cada passo, observar o que está à sua frente, dizer o que viu, verificar o que lhe disseram. Entre a pessoa ignorante e o cientista que constrói hipóteses, é sempre a mesma inteligência que está trabalhando: uma inteligência que cria formas e faz comparações para comunicar suas aventuras intelectuais e para entender o que outra inteligência está tentando comunicar-lhe de volta.

Este trabalho poético de tradução é a primeira condição para qualquer aprendizado. A emancipação intelectual, como concebida por Jacotot, significa a atenção e a declaração daquele poder igual de tradução e contra-tradução. A emancipação traz uma idéia de distância oposta àquela embrutecedora. Animais falantes são animais distantes que tentam se comunicar através da floresta de signos. É este senso de distância que o "mestre ignorante" - o mestre que ignora a desigualdade - está ensinando. A distância não é um mal que deve ser abolido. É a condição normal da comunicação. Não é uma lacuna que demanda um especialista na arte de suprimi-la. A distância que a pessoa "ignorante" precisa atravessar não é a lacuna entre sua ignorância e o conhecimento do mestre; é a distância entre o que ela já conhece e o que ela ainda não conhece, mas pode aprender pelo mesmo processo. Para ajudar seu aluno a atravessar esta distância, o "mestre ignorante" não precisa ser ignorante. Ele só precisa dissociar seu conhecimento do seu domínio. Ele não ensina o conhecimento dele aos alunos. Ele inspira estes alunos a que se aventurem pela floresta, digam o que estão vendo, digam o que eles pensam sobre o que já viram, verifiquem isto e assim por diante. O que ele ignora é a lacuna entre duas inteligências. É a conexão entre o conhecimento do conhecível e a ignorância do ignorante. Qualquer distância é uma questão de acaso. Cada ato intelectual entrelaça um fio casual entre uma forma de ignorância e uma forma de conhecimento. Nenhum tipo de hierarquia social pode se firmar neste senso de distância.

Qual é a relevância desta história quanto à questão do espectador? Os dramaturgos de hoje em dia não querem explicar à sua platéia a verdade a respeito das relações sociais e os melhores meios para acabar com a dominação. Mas não é suficiente que se percam as ilusões. Pelo contrário, a perda das ilusões muitas vezes leva o dramaturgo ou os atores a aumentar a pressão sobre o espectador: talvez ele venha a saber o que deve ser feito, se ele mudar a partir do espetáculo, se ele se destacar da sua atitude passiva e se a cena fizer dele um participante ativo no mundo público. Este é o primeiro ponto que os reformadores do teatro compartilham com os pedagogos do embrutecimento: a idéia da lacuna entre duas posições. Mesmo quando o dramaturgo ou o ator não sabe o que ele quer que o espectador faça, pelo menos ele sabe que o espectador tem que fazer alguma coisa: trocar a passividade pela atividade.

Mas por que não virar as coisas ao contrário? Por que não pensar, neste caso também, que é exatamente este esforço para suprimir a distância que constitui a própria distância? Por que identificar o fato de uma pessoa estar sentada, imóvel, com inatividade, se não pela pressuposição de uma lacuna radical entre atividade e inatividade? Por que identificar "olhar" com "passividade", se não pela pressuposição de que olhar significa olhar para uma imagem ou para uma aparência e isso significa estar separado da realidade que está sempre atrás da imagem? Por que identificar o ato de ouvir com ser passivo, se não pela pressuposição de que agir é o oposto de falar, etc.? Todas estas oposições - olhar/saber; olhar/agir; aparência/realidade; atividade/passividade - são muito mais que oposições lógicas. Elas são o que eu chamo de partilha do sensível, uma distribuição de lugares e de capacidades ou incapacidades vinculadas a estes lugares. Em outros termos, são alegorias da desigualdade. É por isso que você pode mudar os valores dados para cada posição sem mudar o significado das próprias oposições. Por exemplo, você pode trocar a posição do superior e do inferior. O espectador é geralmente desmerecido porque ele não faz nada, enquanto os atores no palco - ou os operários lá fora - fazem alguma coisa com seus corpos. Mas é fácil inverter a questão afirmando que aqueles que agem, aqueles que trabalham com seus corpos, são obviamente inferiores àqueles que são capazes de olhar - isto é, aqueles que conseguem contemplar idéias, prever o futuro, ou ter uma visão global do mundo. As posições podem ser trocadas, mas a estrutura continua a mesma. O que conta, na verdade, é apenas a afirmação da oposição entre duas categorias: existe uma população que não pode fazer o que a outra população faz. Existe capacidade de um lado e incapacidade de outro.

A emancipação parte do princípio oposto, o princípio da igualdade. Ela começa quando dispensamos a oposição entre olhar e agir e entendemos que a distribuição do próprio visível faz parte da configuração de dominação e sujeição. Ela começa quando nos damos conta de que olhar também é uma ação que confirma ou modifica tal distribuição, e que "interpretar o mundo" já é uma forma de transformá-lo, de reconfigurá-lo. O espectador é ativo, assim como o aluno ou o cientista. Ele observa, ele seleciona, ele compara, ele interpreta. Ele conecta o que ele observa com muitas outras coisas que ele observou em outros palcos, em outros tipos de espaços. Ele faz o seu poema com o poema que é feito diante dele. Ele participa do espetáculo se for capaz de contar a sua própria história a respeito da história que está diante dele. Ou se for capaz de desfazer o espetáculo - por exemplo, negar a energia corporal que deve transmitir o aqui e agora e transformá-la em mera imagem, ao conectá-la com algo que leu num livro ou sonhou, viveu ou imaginou. Estes são observadores e intérpretes distantes daquilo que se apresenta diante deles. Eles prestam atenção ao espetáculo na medida da sua distância.

Este é o segundo ponto-chave: os espectadores vêem, sentem e entendem algo na medida em que fazem os seus poemas como o poeta o fez, como os atores, dançarinos ou performers o fizeram. O dramaturgo gostaria que eles vissem esta coisa, sentissem este sentimento, entendessem esta lição a partir do que eles vêem, e que partam para esta ação em conseqüência do que viram, sentiram ou entenderam. Ele parte do mesmo pressuposto que o mestre embrutecedor: o pressuposto de uma transmissão igual, não-distorcida. O mestre pressupõe que aquilo que o aluno aprende é precisamente o que ele ensina. Esta é a noção de transmissão do mestre: existe algo de um lado, em uma mente ou em um corpo - um conhecimento, uma capacidade, uma energia - que deve ser transferido para o outro lado, para outro corpo ou mente. A pressuposição é que o processo de aprendizado não é simplesmente o efeito de sua causa - ensinar - mas a transmissão mesma da causa: o que o aluno estuda é o conhecimento do mestre. Esta identidade entre causa e efeito é o princípio do embrutecimento. Em contrapartida, o princípio da emancipação é a dissociação entre causa e efeito. O paradoxo do mestre ignorante está aí. O aluno do mestre ignorante aprende o que o mestre não sabe, já que o mestre fala para ele procurar alguma coisa e recontar tudo o que ele descobriu no caminho, enquanto o mestre verifica se ele está realmente procurando. O aluno aprende alguma coisa como um efeito do ensinamento do mestre. Mas ele não aprende o conhecimento do mestre.

O dramaturgo e o ator não querem "ensinar" nada. De fato, eles estão mais que cautelosos hoje em dia quanto a usar o palco como um meio de ensino. Eles apenas querem proporcionar um estado de atenção ou uma força de sentimento ou ação. Mas eles ainda supõem que aquilo que vai ser sentido ou entendido será o que eles colocaram no próprio roteiro ou performance. Eles pressupõem a igualdade - ou seja, a homogeneidade - entre causa e efeito. Como sabemos, esta igualdade se baseia em uma desigualdade. Ela se baseia no pressuposto de que há um conhecimento adequado e uma prática adequada no que diz respeito à "distância" e às formas de suprimi-la. Agora, a distância toma duas formas. Há a distância entre o ator e o espectador. Mas há também a distância inerente à própria performance, visto que ela é um "espetáculo" mediático que se encontra entre a idéia do artista e o sentimento ou a interpretação do espectador. Este espetáculo é um terceiro termo, a que os outros dois podem se referir, mas que impede qualquer forma de transmissão "igual" ou "não-distorcida". É uma mediação entre eles e esta mediação de um terceiro termo é crucial no processo de emancipação intelectual. Para evitar o embrutecimento é preciso que exista algo entre o mestre e o aluno. A mesma coisa que os conecta deve também separá-los. Jacotot colocou o livro como o algo que fica no meio. O livro é a coisa material, exterior tanto ao mestre quanto ao aluno, através do qual é possível verificar o que o aluno viu, o que ele disse a respeito, o que ele pensa sobre o que disse.

Isto significa que o paradigma da emancipação intelectual é nitidamente oposto à outra idéia de emancipação na qual a reforma do teatro tem sido freqüentemente baseada - a idéia de emancipação como a reapropriação de um eu que fora perdido num processo de separação. A crítica Debordiana do espetáculo ainda se baseia no pensamento Feuerbachiano da representação como alienação do eu: o ser humano se separa da sua própria essência ao forjar um mundo celestial ao qual o mundo real dos homens está submetido. Do mesmo modo, a essência da atividade humana é distanciada, alienada de nós na exterioridade do espetáculo. A mediação do "terceiro termo" aparece então como a instância da separação, expropriação e traição. Uma idéia de teatro firmado na idéia do espetáculo concebe a externalidade do palco como um tipo de estado transitório que tem que ser abolido. A supressão desta exterioridade se torna, assim, o telos da performance. Este programa demanda que os espectadores estejam no palco e os atores na platéia. Ele demanda que a própria diferença entre os dois espaços seja abolida, que a performance aconteça em qualquer lugar que não seja um teatro. Certamente, muitos avanços da cena teatral resultaram desta derrubada da distribuição tradicional de lugares (no sentido dos locais e dos papéis). Mas a "redistribuição" de lugares é uma coisa; a demanda de que o teatro alcance, como sua essência, a reunião de uma comunidade una é outra. A primeira provoca a invenção de novas formas de aventura intelectual; a segunda provoca uma nova forma de distribuição platônica dos corpos em seus próprios lugares - ou seja, em seu lugar "comum".

Esse pressuposto contra a mediação está conectado a um terceiro, o pressuposto de que a essência do teatro é a essência da comunidade. O espectador tem que se redimir quando deixa de ser um indivíduo, quando é reintegrado no status de membro de uma comunidade, quando ele é arrebatado no fluxo da energia coletiva ou levado à posição de cidadão que age enquanto membro do coletivo. Quanto menos o dramaturgo souber o que os espectadores devem fazer enquanto coletivo, mais ele sabe que eles devem se tornar um coletivo, que eles devem transformar sua mera aglomeração na comunidade que eles virtualmente são. Já é tempo, eu acho, de questionar a idéia do teatro como um lugar especificamente comunitário. Espera-se que ele seja tal lugar porque, no palco, corpos vivos e reais atuam para pessoas que estão fisicamente presentes e juntas no mesmo lugar. Desta forma, espera-se que ele proporcione uma sensação única de comunidade, radicalmente distinta da situação do indivíduo assistindo televisão, ou das pessoas que vão ao cinema, que se sentam diante de imagens desencarnadas, projetadas. Por incrível que pareça, o amplo uso de imagens de todos os tipos de meios na cena teatral não colocou este pressuposto em questão. As imagens podem substituir os corpos vivos na cena, mas enquanto os espectadores estiverem unidos ali, a essência viva e comunitária do teatro parece estar a salvo. Assim, parece impossível escapar da questão: o que acontece especificamente entre espectadores num teatro que não acontece em outro lugar? Existe algo mais interativo, mais comunitário, que acontece entre eles do que entre indivíduos que assistem o mesmo programa na TV ao mesmo tempo?

Acho que esse "algo" não é nada além do pressuposto de que o teatro é comunitário em si e por si mesmo. A pressuposição do que o "teatro" significa sempre corre na frente da cena e prediz seus efeitos reais. Mas, num teatro, ou diante de um espetáculo, assim como num museu, numa escola, ou na rua, existem apenas indivíduos, abrindo seu próprio caminho através da floresta de palavras e coisas que se colocam diante deles ou em volta deles. O poder coletivo comum a estes espectadores não é o status de membro de um corpo coletivo. E também não é um tipo peculiar de interatividade. É o poder de traduzir do seu próprio modo aquilo que eles estão vendo. É o poder de conectar o que vêem com a aventura intelectual que faz com que qualquer um seja parecido com qualquer outro, desde que o caminho dele ou dela não se pareça com o de mais ninguém. O poder comum é o poder da igualdade de inteligências. Este poder une os indivíduos na mesma medida em que os mantém separados uns dos outros; é o poder que cada um de nós possui na mesma proporção para abrirmos nosso próprio caminho no mundo. O que tem que ser colocado à prova pelas nossas performances - seja ensinar ou atuar, falar, escrever, fazer arte, etc. - não é a capacidade de agregação de um coletivo, mas a capacidade do anônimo, a capacidade que faz qualquer um igual a todo mundo. Esta capacidade atravessa distâncias imprevisíveis e irredutíveis. Ela atravessa um jogo imprevisível e irredutível de associações e dissociações.

Associar e dissociar em vez de ser o meio privilegiado que transmite o conhecimento ou a energia que torna as pessoas ativas - isto sim poderia ser o princípio de uma "emancipação do espectador", o que significa a emancipação de qualquer um de nós como espectador. A condição do espectador não é uma passividade que deve ser transformada em atividade. É nossa situação normal. Nós aprendemos e ensinamos, atuamos e sabemos, como espectadores que ligam o que vêem com o que já viram e relataram, fizeram e sonharam. Não existe meio privilegiado, assim como não existe um ponto de partida privilegiado. Em todos os lugares há pontos de partida e pontos de virada a partir dos quais aprendemos coisas novas, se dispensarmos primeiramente o pressuposto da distância, depois, o da distribuição de papéis e, em terceiro, o das fronteiras entre os territórios. Nós não precisamos transformar espectadores em atores. Nós precisamos é reconhecer que cada espectador já é um ator em sua própria história e que cada ator é, por sua vez, espectador do mesmo tipo de história. Não precisamos transformar o ignorante em instruído ou, por mera vontade de subverter coisas, fazer do aluno ou da pessoa ignorante o mestre dos seus mestres.

Deixe-me fazer um pequeno desvio através da minha própria experiência política e acadêmica. Eu pertenço a uma geração que ficou suspensa entre duas perspectivas que competiam entre si: de acordo com a primeira, aqueles que possuíam a inteligência do sistema social deveriam passar este aprendizado para aqueles que sofriam sob este sistema, para que estes então passassem a agir para derrubá-lo. De acordo com a segunda, as pessoas supostamente instruídas eram na verdade ignorantes: como eles não sabiam nada sobre o que era exploração e rebelião, eles tinham que se tornar alunos dos trabalhadores ditos ignorantes. Portanto, eu primeiro tentei re-elaborar a teoria marxista para tornar suas armas teóricas disponíveis para um novo movimento revolucionário, antes de sair para aprender com aqueles que trabalhavam nas fábricas o que significava exploração e rebelião. Para mim, assim como para muitas outras pessoas da minha geração, nenhuma destas tentativas se provou muito bem-sucedida. Foi por isso que eu decidi investigar a história do movimento operário, para entender os motivos do desencontro contínuo entre os trabalhadores e os intelectuais que os visitavam, fosse para instruí-los ou para serem instruídos por eles. Eu tive sorte ao descobrir que esta relação não era uma questão de conhecimento de um lado e ignorância de outro, e tampouco era uma questão de saber versus agir ou de individualidade versus comunidade. Num dia de maio nos anos 1970, enquanto eu pesquisava a correspondência de um operário dos anos 1830 para determinar o que fora a condição e a consciência dos trabalhadores naquela época, eu descobri algo bem diferente: as aventuras de dois visitantes, também num dia de maio, mas uns cento e quarenta anos antes que eu me deparasse com suas cartas nos arquivos. Um dos dois correspondentes tinha acabado de entrar para a utópica comunidade dos Saint-simonistas e ele recontava a um amigo o seu cronograma diário na utopia: trabalho, exercícios, jogos, canto e estórias. Seu amigo respondeu escrevendo sobre uma viagem que ele tinha feito com outros dois trabalhadores para aproveitar o domingo de lazer. Mas não se tratava do lazer corriqueiro de domingo em que o trabalhador procura recuperar suas forças físicas e mentais para a próxima semana de trabalho. Era, na verdade, uma ruptura para outra forma de lazer - a de estetas que desfrutam de formas, luzes e sombras da natureza, a de filósofos que passam o tempo trocando hipóteses metafísicas numa pousada no campo e a de apóstolos que saem para comunicar sua fé aos companheiros ocasionais que encontram ao longo do caminho.

Aqueles trabalhadores que deveriam ter me fornecido informação sobre as condições de trabalho e formas de conscientização de classe nos anos 1830 me deram, no lugar disso, algo muito diferente: uma noção de semelhança ou igualdade. Eles também eram espectadores e visitantes, dentro da própria classe. Sua atividade como propagandistas não podia ser separada da sua "passividade" como meros transeuntes ou contempladores. A crônica do seu lazer provocou uma reconfiguração da relação mesma entre fazer, ver e dizer. Tornando-se "espectadores", eles subverteram a dada partilha do sensível, que diz que aqueles que trabalham não têm tempo livre para passear e olhar ao acaso, que os membros de um corpo coletivo não têm tempo de se tornar indivíduos. É isso que emancipação significa: o embaçamento da oposição entre aqueles que olham e aqueles que agem, entre os que são indivíduos e os que são membros de um corpo coletivo. O que aqueles dias proporcionaram aos nossos cronistas não foi conhecimento e energia para uma ação futura. Foi a reconfiguração hic et nunc da distribuição de Tempo e Espaço. A emancipação dos trabalhadores não dizia respeito a adquirir o conhecimento da sua condição. Tratava-se de configurar um tempo e um espaço que invalidasse a velha partilha do sensível que condenava os trabalhadores a não fazer nada com as suas noites além de restaurar suas forças para trabalhar no dia seguinte.

Compreender o sentido desta quebra no coração do tempo também significava colocar em jogo outro tipo de conhecimento, que não é baseado no pressuposto de qualquer diferença, mas no pressuposto da semelhança. Estes homens, também, eram intelectuais - como qualquer pessoa é. Eles eram visitantes e espectadores, assim como o pesquisador que, cento e quarenta anos depois, leria suas cartas numa biblioteca, assim como os que visitam a teoria marxista ou que estão aos portões de uma fábrica. Não existia distância a vencer entre intelectuais e trabalhadores, atores e espectadores; não existia distância entre duas populações, duas situações ou duas épocas. Pelo contrário, havia uma semelhança a ser reconhecida e colocada em jogo na própria produção de conhecimento. Colocar isso em jogo significava duas coisas. Primeiro, significava rejeitar as fronteiras entre disciplinas. Contar a história/estória dos dias e noites destes trabalhadores me forçou a embaçar os limites entre o campo da história "empírica" e o campo da filosofia "pura". A história que estes trabalhadores contaram era sobre o tempo, sobre a perda e a re-apropriação do tempo. Para mostrar o que isso significava, eu tive que colocar o relato deles em relação direta com o discurso teórico do filósofo que, muito tempo atrás na República, contou a mesma história ao explicar que, em uma comunidade bem organizada, todo mundo deve fazer uma coisa só, que ele ou ela deve cuidar da própria vida, e que os trabalhadores em todo caso não tinham tempo para gastar em nenhum outro lugar que não fosse o próprio local de trabalho ou para fazer qualquer outra coisa que não fosse o trabalho que se encaixava na (in)capacidade com a qual a natureza os dotara. A filosofia, então, não podia se apresentar como esfera do pensamento puro separada da esfera dos fatos empíricos. E também não era a interpretação teórica daqueles fatos. Não havia fatos nem interpretações. Havia duas formas de contar histórias.

Embaçar as fronteiras entre disciplinas teóricas também significava embaçar a hierarquia entre os níveis de discurso, entre a narração de uma história e sua explicação filosófica ou científica ou a verdade que está por trás ou por baixo dela. Não havia metadiscurso explicando a verdade de um discurso de nível inferior. O que tinha que ser feito era um trabalho de tradução, mostrando como histórias empíricas e discursos filosóficos se traduziam mutuamente. Produzir um novo conhecimento significava inventar a forma idiomática que tornaria a tradução possível. Eu tive que usar esse idioma para contar a minha própria aventura intelectual, sob o risco de que o idioma permanecesse "ilegível" para aqueles que queriam saber qual era a causa da história, seu verdadeiro significado, ou a lição que se poderia tirar dela e que desencadearia uma ação. Eu tive que produzir um discurso que fosse legível apenas para aqueles que fariam sua própria tradução a partir do ponto de vista da sua própria aventura.

Este desvio pessoal pode nos levar de volta ao cerne do nosso problema. Estas questões que envolvem o ultrapassamento de fronteiras e o embaçamento da distribuição de papéis são características que definem o teatro e a arte contemporânea hoje, quando todas as habilidades artísticas se desviam do próprio campo e trocam de lugar e de poderes com todas as outras. Temos peças sem palavras e dança com palavras; instalações e performances no lugar de obras "plásticas"; projeções de vídeos transformadas em ciclos de afrescos; fotografias transformadas em quadros vivos e pinturas históricas; escultura que se transforma em show mediático; etc. Agora, existem três formas de entender e praticar esta confusão de gêneros. Existe o renascimento da Gesamtkusntwerk, que se presume ser a apoteose da arte como uma forma de vida, mas que se prova, pelo contrário, como a apoteose de fortes egos artísticos ou um tipo de consumismo hiperativo, senão as duas coisas ao mesmo tempo. Há a idéia de uma "hibridização" dos meios da arte, que complementa a visão da nossa época como uma época de individualismo de massa que se expressa através de trocas incansáveis de papéis e identidades, realidade e virtualidade, vida e próteses mecânicas, e assim por diante. Do meu ponto de vista, esta segunda interpretação nos leva em última análise para o mesmo lugar da primeira - para outro tipo de consumismo hiperativo, outro tipo de embrutecimento, na medida em que efetua o atravessamento das fronteiras e a confusão de papéis meramente como uma forma de aumentar o poder do espetáculo sem questionar seus fundamentos.

A terceira forma - a melhor forma do meu ponto de vista - não tem como objetivo a amplificação do efeito, mas a transformação do próprio esquema causa/efeito, com a rejeição do conjunto de oposições que sustenta o processo de embrutecimento. Ela invalida a oposição entre atividade e passividade assim como o esquema de "transmissão igual" e a idéia comunitária de teatro que na verdade faz dele uma alegoria da desigualdade. O atravessamento das fronteiras e a confusão de papéis não deveriam levar a uma espécie de "hiperteatro", transformando a condição (passiva) do espectador em atividade ao transformar a representação em presença. Pelo contrário, o teatro deveria questionar o privilégio da presença viva e trazer o palco novamente para um nível de igualdade com o ato de contar uma história ou de escrever e ler um livro. Ele deveria ser a instituição de um novo estágio de igualdade, onde os diferentes tipos de espetáculo se traduziriam uns nos outros. Em todos estes espetáculos, na verdade, a questão deveria ser ligar o que uma pessoa sabe com o que ela não sabe; deveria se tratar, ao mesmo tempo, de atores que apresentam suas habilidades e espectadores que estão tentando encontrar o que aquelas habilidades poderiam produzir em um novo contexto, entre pessoas desconhecidas. Artistas, como pesquisadores, constroem o palco onde a manifestação e o efeito das suas habilidades se tornam dúbios na medida em que eles moldam a história de uma nova aventura em um novo idioma. O efeito do idioma não pode ser antecipado. Ele demanda espectadores que são interpretadores ativos, que oferecem suas próprias traduções, que se apropriam da história para eles mesmos e que, finalmente, fazem a sua própria história a partir daquela. Uma comunidade emancipada é, na verdade, uma comunidade de contadores de história e tradutores.

Eu tenho consciência de que tudo isso deve soar como palavras, meras palavras. Mas eu não levaria isto como um insulto. Ouvimos tantos oradores passarem suas palavras adiante como algo mais que palavras, como senhas que nos habilitariam a entrar em uma nova vida. Vimos tantos espetáculos que se gabavam por não serem meros espetáculos, mas cerimoniais de uma comunidade. Mesmo hoje em dia, apesar do chamado ceticismo pós-moderno quanto a mudar nossa forma de viver, pode-se ver tantos shows que posam como mistérios religiosos que talvez não seja tão escandaloso ouvir, para variar, que palavras são apenas palavras. Romper com os fantasmas da Palavra transformada em carne e do espectador transformado em ator, saber que palavras são apenas palavras e que espetáculos são apenas espetáculos talvez nos ajude a entender melhor como palavras, histórias e espetáculos podem nos ajudar a mudar alguma coisa no mundo em que vivemos.

Leia a revista eletrônica Questão de Crítica -
http://www.questaodecritica.com.br/

Nenhum comentário: